- A Paz Através de Uma Tigela de Chá -

Entrevista com Hidenori Sakao, pioneiro da Crítica Musical Brasileira.

A 19ª entrevista com celebridades brasileiras foi realizada com o Sr.Hidenori Sakao, ex-Acessor Cultural de Consulado Geral do Japão em São Paulo, que atuou também como Oficial de Ligação de Esquadrão de Treinamento da Força de Auto Defesa do Japão no Porto de Santos. Condecorado a Ordem do Sol Nascente, Raios de Ouro e Prata em 2020.

Ouvimos histórias valiosas relacionadas à música do Sr. Sakao que continua ativo há muito tempo como uma ponte entre as duas culturas, a japonesa e a brasileira através da música, e como um “dicionário ambulante dos acontecimentos do início da Bossa Nova”.

Perfil

Data de nascimento: 15 de setembro de 1931

Cidade natal: Yokohama City, Prefeitura de Kanagawa (seu avô se estabeleceu no local como atacadista de tecido de lã imediatamente após a Restauração da Era Meiji, é a terceira geração de genuíno “Hamakko” (= natural de Yokohama).

Composição familiar: uma filha

Hobbies: Música, leitura (especialmente sobre assuntos marítimos como construção naval, navegação, batalhas navais, naufrágio)

 

– Por favor, conte-nos sobre seu encontro com a música brasileira e como o Senhor veio para o Brasil.

Cheguei ao Brasil em outubro de 1956, antes da Bossa Nova nascer. A música brasileira naquela época tinha uma atmosfera caótica de nova onda (= “Nouvelle Vague”), e era uma época em que surgiu o som de rock.

Logo depois do final da Segunda Guerra Mundial, metade do espaço do Colégio “Suiran”, onde eu estudava, foi tomada pelo exército de ocupação. Um dia, quando estava na escola, deparei com uma cena, em que um soldado americano tocava piano no auditório. Fui atraído pela performance, seu estilo era jazz “ad-libbed” (= improvisado). Acabei sendo muito influenciado por ele e aprendi a tocar piano de ouvido.

Desde que ingressei na Universidade do Japão (= “Nihon Daigaku”), fui membro de uma banda estudantil e tocava para o exército de ocupação das bases locais de Yokohama e Yokosuka. Naquela época, a música havaiana também estava na moda, e então eu tocava “ukulele”. Depois disso, mudei meu foco para o jazz. Foi uma época em que surgiram brilhantes estrelas do jazz, como Hachidai Nakamura (compositor conhecido mundialmente por “ SUKIYAKI “) e “Nabesada” (ou Sadao Watanabe – principal saxofonista de jazz do Japão).

Um dia, resolvi fazer apresentação numa festa familiar para estrangeiros num iate clube do porto de Yokohama. Enquanto preparava o palco, uma linda garota na idade colegial me perguntou: “Você toca samba?”. Naquela época, não havia repertório de canções brasileiras. Tinha no meu bloco de anotações apenas o “Samba Brasil” interpretado pela Orquestra Cubana, que era “mainstream” (= convencional) da música latina nos Estados Unidos na época. Como somente essa música estava anotada no bloco, toquei-a imitando a interpretação daquela orquestra. Ela, sozinha, aplaudiu animadamente e me solicitou tocar mais. Senti que ela não seria americana, por isso, criando coragem, perguntei sua nacionalidade. Ela me respondeu: “Eu sou brasileira!”.

Naquela época, eu estava aprendendo o espanhol com o Cônsul Honorário de El Salvador em Tóquio, então contei a experiência que tive no iate clube, e soube que aquela linda jovem era Vera Mendes Gonçalves, filha do embaixador brasileiro no Japão. Depois do palco naquela noite, devido ao efeito do gole de uísque, consegui perguntar indiscretamente para ela: “Tem muitas mulheres bonitas como você no Brasil?”. E, fiquei chocado com a resposta dela: “Tem muitas garotas mais bonitas que eu no Brasil”.

Falando do Brasil, foi uma época em que havia apenas a imagem da Amazônia e do café, mas o acordo de imigração Japão-Brasil já tinha sido retomado, e o Cônsul Honorário de El Salvador me sugeriu ir para o Brasil. Ao contrário de hoje, as coisas eram mais flexíveis, e quando fui providenciar os documentos para minha viagem, o escritório da Prefeitura e outras repartições do governo fizeram vista grossa diante de um monte de regulamentos, e assim meus documentos foram aprovados sem dificuldades e com segurança. Dessa forma, cheguei a São Paulo de navio holandês, passando pelo porto de Rio de Janeiro. Cheguei ao Brasil atraído pela beleza da filha do embaixador brasileiro! Ninguém acredita, mas eu tinha apenas 25 anos de idade na época e fui motivado a viajar ao Brasil por causa da força da juventude.

– Como passou o tempo depois de chegar a São Paulo?

Tive contatos com diversas pessoas relacionadas a Yokohama, e eu fui indicado para trabalhar num programa japonês de rádio local chamado “Hora de Wakamoto” como locutor de “Notícia da NHK”. A língua japonesa usada por pessoas naturais de Yokohama era a “padronizada”, e este foi o motivo pelo qual fui contratado para aquela função.
Mais tarde, após trabalhar por algum tempo no programa japonês de Rádio Santo Amaro, voltei para o Japão temporariamente, e trabalhei em Tóquio, na área de produção de discos de música brasileira. Depois, retornei para São Paulo em 1972, e fui contratado no Consulado Geral do Japão em São Paulo, onde trabalhei como Assessor Cultural durante 25 anos.

– Poderia nos contar sobre suas experiências na época da Força de Auto Defesa?

A partir daquele mesmo ano de 1972, fui nomeado pelo Cônsul Geral da época, Sr. Masao Ito, para Oficial de Ligação a Bordo para cuidar do relacionamento entre o Esquadrão de Treinamento de Auto Defesa do Japão no Porto de Santos e a Marinha do Brasil. Estive envolvido na gestão de embarques desde reabastecimento de combustível e de água, durante a visita da Força de Auto Defesa ao Brasil a cada 4 anos. Eu acho que aquela minha experiência de uma semana de treinamento na vida naval, durante a guerra, conduzida no estilo espartano, no Centro de Treinamento Estudantil pelo Comando Naval de Yokosuka, que recebi quando cursava o antigo sistema de ensino médio, estava viva em mim! Foi também útil de alguma forma, o meu conhecimento de termos técnicos da marinha em inglês e português. O trabalho era árduo, começava cedo da manhã até altas horas da noite, mas também tive muitas experiências interessantes.

– O que é bossa nova?

Bossa Nova é a gíria da região do Rio, que significava um novo estilo.

No final da década de 1950, a palavra “Bossa Nova” foi escrita no anúncio de um concerto em uma universidade no Rio. Dizem que, a partir de então, esta palavra passou a ser usada. Em vez de dizer quem a criou, seria mais apropriado dizer que foi o resultado da interpretação da música nascida num movimento no qual uma nova onda (= “Nouvelle Vague”) crescia gradualmente.

Não há dúvida de que João Gilberto ou Antônio Carlos Jobim eram figuras centrais da Bossa Nova, mas não foi o estilo musical produzido por eles ou por certas figuras específicas! No Japão, João Gilberto é considerado deus ou pai da Bossa Nova, mas o famoso mestre do violão Baden Powell o chamou de “café com leite”. No Brasil da época, cantores de origem italiana tinham repertório de música emocional cantada em tom rico e volumoso, mas também com a introdução da cultura americana, era apreciado o tom suave como o de Bing Grossby. Essas duas situações musicais que estavam estabelecidas eram o “café”. O “leite” era a busca de um estilo novo de ritmo com uma nova modalidade de tocar a bateria. O “café com leite” é a mistura de “café” (básico) e “leite” (nova onda = “Nouvelle Wague”). Ou seja, parece ser o estilo da música de João Gilberto. Podemos afirmar que ele não é o inventor da Bossa Nova, mas é quem inventou o “café com Leite”. Seja como for, João Gilberto é, sem dúvida, um grande músico.

Conheci Antônio Carlos Jobim em 1957 no Rio, em Copacabana, quando ele não era tão famoso. Um dia, meu conhecido brasileiro me levou para um bar onde Jobim estava tocando piano. Não só no Japão de logo após a guerra, mas também no Brasil, havia muitos professores de música que tocavam em bares para sobreviver. Jobim também era professor de música, mas lembro que seu senso de acordes de piano era moderno e bonito. Eu estava tão bêbado naquela noite que não me lembro do nome do bar, mas lembro-me bem dos apertos de mãos com o Jobim!

Agora, por que a Bossa Nova foi aceita no mundo todo? A principal razão pode ter sido a facilidade para tocar o seu ritmo, possibilitando os estrangeiros se apresentarem. Isso se deve, em parte, à realização do Concerto Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova York, que cativou os músicos de jazz americanos, dando origem para Bossa Nova se espalhar pelo mundo.

A Bossa Nova foi uma música popular da elite brasileira em primeiro lugar, e, aos poucos, foi aceita pelo público em geral. No entanto, no final da década de 1960 já estava no declínio no Brasil, com o aumento do som da guitarra elétrica e do rock devido aos Beatles. Foi através dos Estados Unidos que os japoneses conheceram a Bossa Nova. Eles foram provavelmente atraídos por sua melodia suave, e especialmente pela influência entre as mulheres japonesas.

A “vida” ou o “sangue” da pessoa vai se formando conforme o ambiente, as relações com as pessoas do lugar ou da região onde se nasce e vive. Como o samba é música folclórica, seu ritmo não pode ser interpretado sem o gingado (= que está no “sangue”) para dar a vida à música tocada. Não basta ter apenas a técnica. O mesmo pode ser dito para canções folclóricas japonesas. A “diversão” sai por dentro do corpo enquanto se mistura com a arte, então o gingado se manifesta no corpo, refletindo o ritmo ditado pelo samba. No “divertir ou chorar”, a arte não é apenas uma técnica.

– Por último, conte-nos a sua idéia sobre a cerimônia de chá e a música.

Como a cerimônia do chá é um mundo do silêncio, no espaço desta cerimônia (ou do “cha-no-yu”), o som emitido pelo anfitrião ao preparar o chá ou o som da chaleira fervendo a água não é barulho, mas uma espécie de fundo musical (= “BGM – back ground music”). Pode-se dizer que a Bossa Nova, com o seu tom suave, apropriado para um fundo musical, passou a ser um dos ritmos favoritos dos japoneses, por se tratar de um povo que aprecia o silêncio. Talvez algumas pessoas considerem esta minha opinião como uma argumentação forçada. Mas, é apenas uma simples opinião particular de uma pessoa idosa envolvida na música brasileira há muitos anos. Os gêneros musicais que se tornaram famosos no Japão, como salsa, tango e mambo, são todos de tons vigorosos e distantes daquele mundo silencioso do chá. Continuo sentindo firmemente que o fato de a Bossa Nova ser escolhida como fundo musical até hoje no Japão tem a ver com a filosofia da cerimônia do chá.

O Departamento Editorial agradece sinceramente pela excelente história! Muito obrigada!

 

Data da entrevista: 26 de abril de 2022

 

Junho de 2022

Veja também

Última atualização

20/04/2024 - Relatório: 16 de março: Chakai na Japan House
01/04/2024 - 11. Abril (fim de verão) | Chashaku no mei – Nome poético da colher de chá
02/03/2024 - Notícias: Hakuei-an News
01/03/2024 - 10. Março (fim de verão) | Chashaku no mei – Nome poético da colher de chá
01/03/2024 - 22. Kuchi | Cantinho da Língua Japonesa
01/02/2024 - 21. Mie | Cantinho da Língua Japonesa
01/02/2024 - 9. Fevereiro (verão) | Chashaku no mei – Nome poético da colher de chá