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2. Haru wa akebono – Da Primavera, o amanhecer

Autora do Período Heian (794 a 1185), Sei Shônagon (清少納言 965-1017/1025) compôs a obra “Makura no Sôshi 枕草子” (O Livro do Travesseiro), onde com grande maestria escreve sobre o transcorrer das quatro estações. Começa com “Haru wa akebono”, manifestando grande interesse pelas estações do ano.

Com leves pinceladas discorrerá…

A começar pela primavera:「春は曙。やうやう白くなりゆく山際やまぎわ、少しあかりて、紫だちたる雲の細くたなびきたる」 “Da primavera, o amanhecer. É quando palmo a palmo vão se definindo as esmaecidas linhas das montanhas e no céu arroxeado tremulam delicadas nuvens.”

Prossegue, com o verão:「夏は夜」 “Do verão, a noite. Em especial, os tempos de luar, mas também as trevas, de vaga-lumes entrecruzando-se em profusão. Ou então, os solitários ou mesmo em pares que seguem com brilhos fugazes. A chuva também é igualmente bela.”

Sobre o outono:「秋は夕暮れ」 “Do outono, o entardecer. São os momentos do arrebol da tarde em que o sol se acha prestes a tocar as colinas, quando se tornam comoventes os corvos que se apressam para os ninhos em grupos de três ou quatro, ou dois e três, e o que diríamos então, ao avistarmos os minúsculos gansos selvagens seguindo em fila, que encantadores! O sol já posto, melancólico soa o ciciar do vento e o canto dos insetos.”

Sobre o inverno:「冬はつとめて。雪の降りたるはいうべきにもあらず」 “Do inverno, o despertar. Indescritível é com a neve caindo e nele incluo a ofuscante brancura da geada. Mesmo na ausência destas, em manhãs de um frio cortante, o apressar das pessoas em acender o fogo e o corre-corre entre os aposentos com os carvões acesos são cenas típicas desta estação. O sol já nas alturas e o frio mais ameno, não nos cativa mais a brasa já quase tornada cinzas no braseiro portátil.”

Na presente coluna denominada “Wa no kokoro”, estamos observando e apresentando a visão da natureza, da beleza e a maneira de viver dos japoneses.

Na nossa opinião, não existe uma obra que se equipare ao “Livro do Travesseiro”. Ela descreve o quanto as pessoas de antigamente eram receptivas à natureza, capazes de colocar-se no mesmo nível de sensibilidade com ela. Se há palavras que podem descrever as mudanças das estações e até mesmo o passar das horas de um dia, estas seriam um legado das pessoas que viviam o dia a dia em unidade com a natureza.

Um sinônimo para “akebono” é “inanome”, uma malha de parede de palha. Como outro sinônimo, temos a palavra “shinonome”, utilizada, por exemplo, da seguinte forma: “O momento de amanhecer, quando o céu do leste começa a clarear”. Originalmente, a palavra significava uma janela entretecida de bambu, a qual era utilizada como uma espécie de brecha, para que a luz entrasse. Nas madrugadas, uma luz tênue entrava pelas frestas e, por esse motivo, o amanhecer foi também expresso por “shinonome”.

A palavra correspondente a “crepúsculo” em japonês, “tasogaredoki (たそがれ時)” ou “kawataredoki” (かわたれ時)” deriva de “tasokare 誰そ彼” ou “kawatare 彼は誰”, algo como perguntar “quem é ele?”, definindo assim as horas do crepúsculo, quando não se distingue bem o rosto das pessoas, pelo estado de semiobscuridade daquele momento.

Desta forma, percebe-se o sentido estético dos japoneses na preferência de momentos de claridade natural ou de luz tênue. Este aspecto nota-se claramente também na obra “陰翳礼賛 In-ei rai-san”, “Em louvor à sombra”, de Junichiro Tanizaki (1886-1965).

O poeta chinês da dinastia Tang (618-907), Meng Haoran 孟浩然 (em japonês: Mô Kônen) (689-740), diz em um poema: “Na primavera, aquele que dorme não conhece o amanhecer”. Podemos interpretar que: na primavera dorme-se tão profundamente, que nem se percebe o amanhecer e, portanto, perde-se a hora de acordar. Tanto este poema como o “Haru wa akebono”「春はあけぼの」transmitem a maravilha de um amanhecer da primavera, o prazer de uma manhã primaveril.

 

NOTA: O presente artigo “Haru wa akebono – Da Primavera, o amanhecer” foi originalmente escrito em japonês, mas a tradução para a língua portuguesa ficou um pouco diferente do original, uma vez que se quis ressaltar cada uma das estações, para o leitor brasileiro compreender melhor a sensibilidade estética nipônica. As quatro citações textuais de O Livro do Travesseiro de Sei Shônagon, foram transcritas diretamente da tradução brasileira de Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro. Organização de Madalena Hashimoto Cordaro. São Paulo: Editora 34, 2013.

Abril de 2019

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